A reconstrução de Notre Dame revelou o que muitos esquecem: sem artífices, não há luxo, nem cultura duradoura. Só marketing. É tempo de valorizar quem executa com mestria, geração após geração.
Largamente noticiado, a Catedral de Notre Dame, em Paris, ardeu em 2019. Como a grande maioria dos locais de culto, o sítio onde começou a ser erguida em 1163 a Catedral de Notre Dame foi anteriormente um espaço de culto Celta, posteriormente um templo Romano dedicado ao Deus Júpiter e, por volta do ano 550 da nossa era, um dos primeiros templos cristãos de Paris. Uma história de milénios dedicada ao transcendente.
Do fogo que consumiu este fantástico edifício resultou a imediata certeza que seria reconstruído. Os meios financeiros não foram uma dificuldade. Terá custado cerca de 850 milhões de euros, verba que foi ultrapassada com diferentes doações, em particular de grandes empresas francesas, nomeadamente da área do luxo.
Uma dificuldade a vencer foi recrutar artífices em número e saber que permitissem o trabalho de reconstrução, pese embora o reconhecimento com que o Presidente da República Francesa anualmente premeia os mestres de diferentes ofícios, ditos artífices, na festa Nacional Francesa de 14 de julho. Esse destaque contribui anualmente para a valorização, e consequente preservação, de saberes ligados à excelência, ao trabalho de artífices especializados, pilares essenciais na indústria do luxo que, na Europa, vale perto de 5% do PIB ou seja, perto de três vezes o PIB de Portugal.
Na sua grande maioria, as marcas europeias do mercado do luxo estão agregadas na ECCIA – European Cultural and Creative Industries Alliance, onde Portugal está representado pela Laurel, associação portuguesa de marcas de excelência. A indústria do luxo gera riqueza, ensina profissões, paga impostos, emprega cerca de 2,1 milhões de pessoas e é responsável por 10% das exportações da União Europeia. É coisa séria. E tem futuro promissor. Um produto que vai ao encontro à capacidade de adquirir.
Já agora, para não nos deixarmos embriagar pelo merecido chique francês recordo, como bem sabemos, que a linda expressão Notre Dame significa Nossa Senhora. A Catedral de Notre Dame é a Catedral de Nossa Senhora. O que nos transcende é invariavelmente inspirador.
Artífice ou artesão?
É necessário clarificar que uma coisa não tem nada a ver com a outra. A aparente semelhança resulta da raiz comum que também declina em artes. Um artesão é um criador. Um inventor que materializa uma determinada peça, em regra fruto da sua visão pessoal. Amiúde não há duas peças iguais embora todas tenham um “ar de família”. Salvo raríssimas exceções, começa e acaba nessa mesma pessoa. Não passa o saber da experiência atingida. Um artificie é um profissional altamente especializado com, em média, cerca de dez anos de aprendizagem na profissão e treino diário…. perde-se a mão. O mestre que forma o aprendiz passa saber apurado ao longo de gerações.
Voltando à Notre Dame, outra dificuldade a ultrapassar foi encontrar carvalhos em quantidade e com a idade suficiente para terem o tamanho necessário para a construção de determinadas vigas, nomeadamente de suporte para a cobertura. Foram necessárias mais de mil árvores com perto de 150 anos, diâmetros superiores a meio metro e altura de 10 metros. Cortadas antes da primavera, março, se cortadas na Europa, para que não tenham demasiada seiva e adequadamente secas por mais de um ano. Adaptando o sentido do veio das árvores ao fim a que se destinam e escolhidas entre pares para a função mais apropriada. Artífices de larga experiência passada por gerações de mestres, aplicada na prática por mãos treinadas e mentes focadas.
Isto é um artífice. Alguém que, após anos de aprendizagem e prática, tem condições para cumprir com precisão determinado caderno de encargos para determinado fim. Não é um criador nas funções de artífice. É um executante altamente capacitado, de grande rigor e maior valor. Um exemplo que ilustra a diferença entre artífice e artesão está evidenciado numa orquestra sinfónica. Todos os executantes têm, necessariamente, de seguir a rigor a pauta que leem e colocar no exato tempo certo a sua intervenção. Treinam demoradamente a sós e em grupo. Em regra, um só instrumento das dezenas que estão presentes numa orquestra. São dirigidos por um maestro. Quando atuam, quando entregam o fruto do seu labor ao cliente não há lugar a qualquer engano.
Nesta ilustração o artesão é aquele músico criativo que toca gaita ao mesmo tempo que tambor com os pés, guitarra com as mãos e canta nos intervalos da gaita. Resulta sempre bem, nem que fora pela destreza empregue e riqueza visual. Confesso achar mais divertido este último. Não é preciso saber música para apreciar o artesão músico. Há que ser conhecedor para apreciar uma orquestra e seu maestro.
Curiosamente, nos últimos cinquenta anos em Portugal, este trabalhador de exceção tem sido relegado para lugar menor, diria mesmo quase que envergonhado no seu trabalho como artífice. A indústria do luxo europeia precisa de atrair novos atores e precisa de os valorizar de forma a preservar 2,1 milhões de postos de trabalho e a consequente criação de riqueza. O joalheiro, a pintora de porcelanas, o chef de cozinha, a costureira de moda, o carpinteiro naval, os curtumes, o escanção, o canteiro, o marceneiro… enfim, uma variedade de profissões integradas em marcas de projeção mundial onde o artífice é elemento essencial, acarinhado e protegido.
Em Portugal há todo um caminho a percorrer onde a valorização remuneratória precisa de ser integrada num enquadramento fiscal que permita às empresas formar artífices de excelência com o apoio do estado, essencial na sociedade redistributiva que a Europa promove e onde estamos integrados. Tal como um estudante de faculdade, suportado em larga escala por erário público, ou seja, pelo contribuinte, a formação do artífice não se enquadra no tratamento de profissão de segunda a que o sistema fiscal a relega. O artífice em formação redistribui o que não recebeu.
Não precipitámos em abril de 1974 a democracia para limitar os horizontes e mudar as classes de desprotegidos. Abril foi para todos, não só para alguns.
Jorge Leitão, Responsável da Leitão & Irmão Joalheiros e sócio-fundador da Laurel







