A nomeação de Luca de Meo para CEO da Kering marca uma viragem estratégica num grupo que procura recuperar tração. O executivo italiano sucede a François-Henri Pinault, que deixa um legado transformador.
Quando se faz história, chega o momento de a passar adiante. François-Henri Pinault deixa a liderança executiva da Kering ao fim de duas décadas de um percurso que reconfigurou o grupo familiar francês num império de luxo moderno. A escolha do seu sucessor, porém, desafia as convenções habituais do setor: Luca de Meo, italiano, 58 anos, sem passado na moda mas com provas dadas em reestruturações industriais, será o novo CEO da Kering a partir de 15 de setembro.
Num momento de desaceleração do setor do luxo e de perda de fulgor da Gucci — a jóia da coroa do grupo —, a Kering opta por uma liderança com competências técnicas, visão estratégica e um histórico de reinvenções com impacto. De Meo sai da Renault, onde protagonizou uma das viragens mais marcantes da indústria automóvel recente. Leva consigo não apenas conhecimento industrial e financeiro, mas também um ADN profundamente ligado à construção de marca.
De Milão para o mundo, com branding no ADN
Formado em gestão pela Universidade Luigi Bocconi, em Milão, Luca de Meo é tudo menos um “técnico”. Apesar da carreira em marcas automóveis — Fiat, Volkswagen, Seat, e mais recentemente Renault —, destacou-se sempre pelo pensamento criativo, a aposta na estética e a capacidade de construir narrativas com impacto global.
Foi ele quem relançou o Fiat 500 nos anos 2000, transformando-o de carro utilitário em ícone urbano. Mais tarde, na Renault, voltou a aplicar a fórmula ao Renault 5, conciliando design retro com inovação tecnológica. Em ambas as ocasiões, mostrou que sabe ler o espírito do tempo — algo essencial no mundo do luxo, onde a aura da marca é tão importante quanto o produto.
Apesar de vir de um universo “duro”, como o automóvel, Luca de Meo é reconhecido por ter uma sensibilidade apurada para cultura de marca. Colecionador de relógios suíços e apaixonado por design, é visto por analistas como alguém com afinidade natural com o universo do luxo. “Marketing e gestão de marcas são o seu ponto forte — e isso encaixa com o que o sector de luxo exige”, escreveu o analista Luca Solca, da Bernstein.
A travessia de François-Henri Pinault: de conglomerado generalista a potência do luxo
Filho do magnata François Pinault, foi em 2005 que François-Henri assumiu a presidência do grupo familiar, então ainda sob a designação PPR (Pinault-Printemps-Redoute). O seu movimento mais emblemático foi precisamente transformar esse conglomerado generalista — que tinha retalho, distribuição e artigos de consumo — num grupo de luxo focado, rebatizando-o como Kering em 2013.
Entre os marcos mais importantes da sua liderança constam:
• Aquisição e expansão da Gucci: Reforçou o posicionamento da marca com a contratação de Alessandro Michele em 2015, cuja estética maximalista redefiniu o gosto da década. Gucci passou a representar cerca de 45% das receitas do grupo.
• Recrutamento cirúrgico: Desde Phoebe Philo na Bottega Veneta (e, mais tarde, Daniel Lee) até Anthony Vaccarello na Saint Laurent, Pinault mostrou talento em reconhecer vozes criativas disruptivas.
• Sustentabilidade como bandeira: Foi pioneiro na publicação de relatórios ambientais detalhados, na rastreabilidade de matérias-primas e na aposta em plataformas de recommerce e produção circular.
• Ativismo institucional: Criou a fundação Kering para combater a violência contra mulheres e foi um dos primeiros grandes executivos do luxo a articular posições sobre responsabilidade social.
Mesmo com alguns erros — como a hesitação em diversificar a dependência da Gucci —, o saldo é claramente positivo. Pinault transformou a Kering numa potência global e consolidou uma cultura corporativa centrada em valores, sem perder ambição.
Kering e LVMH: turbulência em paralelo
A saída de Pinault acontece num momento em que nenhum dos grandes grupos do luxo parece imune a abalos, como já tinhamos referido aqui e aqui. A Kering viu o seu valor bolsista cair cerca de 70% em três anos, fruto de resultados fracos na Gucci, instabilidade criativa e mudanças abruptas no gosto dos consumidores.
Já a LVMH, apesar da sua dimensão colossal, registou um raro trimestre em queda, com as divisões de Moda & Pele a recuar 5% no primeiro trimestre de 2025. A saída recente de Maria Grazia Chiuri da Dior e a necessidade de reencontrar relevância criativa em várias casas mostram que, mesmo no topo, a manutenção da liderança exige movimento constante.
Adicionalmente, o consumidor global está a mudar: a geração Z procura exclusividade real, compromisso ambiental e produtos que não sejam apenas logótipos ambulantes. Marcas com produção limitada, como a Hermès, começam a colher os frutos dessa viragem — e até já ultrapassaram a LVMH em capitalização bolsista.
O que se segue?
Com Luca de Meo, a Kering aposta numa abordagem industrial mais racional e numa visão de longo prazo que ultrapasse os ciclos de entusiasmo criativo. Pinault continuará como chairman, garantindo a continuidade da visão familiar e a supervisão das decisões mais estratégicas. A Gucci, por sua vez, terá nos próximos desfiles e campanhas um teste crucial: será que Demna, vindo da estética ugly chic da Balenciaga, consegue reconquistar um público mais exigente e menos ruidoso?







