Há imagens que valem por um programa inteiro de governo. A Laurel escolheu a morfologia do Airbus A380 para explicar, com clareza desconcertante, o que está em causa no futuro do turismo em Portugal. Tal como o maior avião comercial do mundo depende do equilíbrio entre classes — com os passageiros de primeira e executiva a suportarem financeiramente a operação — também o turismo nacional só será viável se conseguir equilibrar valor e volume, experiência e impacto, excelência e autenticidade.
É esta a base do documento “Visão para um Turismo de Qualidade em Portugal”, uma proposta estruturada, inteligente e provocadora, que convida o país a repensar o rumo. A Laurel — associação que representa marcas portuguesas de luxo, excelência e saber fazer — defende que já não basta contar turistas: é preciso medir o impacto económico, social e ambiental que cada visitante deixa no território. O que está em jogo é muito mais do que quotas de mercado: é a identidade do país, a sua imagem externa e a qualidade de vida interna.
A proposta assenta num conjunto de ideias tão pragmáticas quanto urgentes. Por um lado, descentralizar o turismo, apostando em zonas com enorme potencial e menor pressão — Évora, Minho, Açores, Comporta. Por outro, aplicar critérios de gestão ativa em zonas já saturadas como Alfama, Sintra ou a Rua das Flores no Porto, onde a massificação ameaça não apenas a experiência dos visitantes, mas sobretudo a vida das cidades. A isto junta-se uma nova lógica de promoção segmentada: diferentes mercados para diferentes tipos de turista, desde o visitante cultural ao viajante de alto rendimento, que procura experiências únicas, personalizadas e silenciosamente memoráveis.
Mais do que boas ideias, um plano com execução
A visão da Laurel implica ainda um compromisso com a qualidade em todas as etapas da jornada — da chegada ao aeroporto ao momento da partida —, incluindo melhorias na fluidez de processos como o “tax free”, na gestão dos fluxos turísticos por via digital e na qualificação urbanística de zonas nobres como a Avenida da Liberdade, os Jerónimos ou a Torre de Belém. A ideia não é excluir, mas sim equilibrar: criar um ecossistema turístico onde todas as “classes” são bem-vindas, mas onde se reconhece que o valor não está nos números, está na experiência e no legado.
Em vez de crescer mais, Portugal precisa de crescer melhor. E, como afirma Francisco Carvalheira, diretor-geral da associação, “Portugal tem tudo para ser um destino de excelência — falta apenas decidir que tipo de país queremos ser”. A entrevista completa, que agora publicamos, aprofunda esta ambição e revela bastidores, obstáculos e oportunidades de um país com 900 anos de história e um futuro por escrever.
“Portugal não precisa de mais turismo. Precisa de melhor turismo”
Francisco Carvalheira, diretor-geral da Laurel – a associação portuguesa que reúne marcas de excelência com o objetivo de valorizar o “saber fazer” nacional e promover a autenticidade, inovação e sustentabilidade – defende um novo rumo para o país: menos pressa, mais visão. Nesta conversa sem filtros, fala de luxo, identidade, políticas públicas e da urgência de criar marcas portuguesas com ADN próprio.
A Laurel já conta com alguns marcos importantes. Como avalia o percurso até aqui?
E o foco na palavra “luz”, que tantas vezes repete?
A luz é central na nossa identidade — mas curiosamente ainda causa desconforto. O próprio Governo e o Turismo de Portugal têm dificuldade em lidar com ela. O que propomos é claro: proteger e valorizar o saber fazer português, baseado no trabalho dos artífices. Não inventámos nada, mas somos os mais recentes a defender este património. O luxo nasce sempre do trabalho manual de exceção. E, para isso, é preciso atrair jovens, voltar a dar dignidade a estas profissões.
E a internacionalização? Qual o papel das vozes de fora?
Fazemos questão de convidar gente de fora, não porque sejam melhores, mas porque lá fora este tipo de movimento tem mais tempo, dimensão e, acima de tudo, consistência. E consistência é a palavra-chave do luxo. Trabalhamos para as melhores marcas do mundo — mas ainda não somos bons a criar as nossas. Falta-nos essa apetência e formação. O nosso papel é esse: unir esforços, gerar conhecimento e criar marcas portuguesas com identidade própria.
A Laurel conseguiu integrar Portugal num estudo europeu sobre luxo. Porque isso é tão relevante?
Porque até agora nem éramos considerados. Portugal nem constava no radar da ECCIA. Hoje, estamos lá. E isso é fruto do trabalho feito. Estamos também a preparar uma parceria que vai permitir, de forma sistemática, criar um barómetro de informação sobre o luxo em Portugal. Precisamos de números, métricas, dados — sem isso não se constrói estratégia.
Quais têm sido os projetos mais gratificantes destes quatro anos?
E a internacionalização da excelência portuguesa?
Começámos agora a organizar viagens para mercados estratégicos, apresentando a nossa excelência. Há imprensa estrangeira interessada em bons exemplos em Portugal. E lançámos o programa Portugal Privé, que convida turismo de alto rendimento a visitar marcas portuguesas. O primeiro teste foi um sucesso.
Porquê este foco tão claro no turismo?
Porque representa 20% do PIB nacional. Não é um detalhe — é central para o país. E o que temos visto é um modelo esgotado, centrado em volume, que já não serve. É por isso que publicámos o nosso documento de visão para o turismo em Portugal. Um manifesto fora da caixa, provocador. Vamos trazer a Glion — a melhor universidade mundial de gestão hoteleira — para um brainstorming sobre que futuro queremos. O problema não é não sabermos o caminho: é não termos as ferramentas.
A crítica ao modelo de turismo de massas é recorrente. Porquê essa insistência?
Falta persistência?
Qual é a principal ambição da Laurel neste momento?
Há entraves institucionais?
Sim. Dou-lhe um exemplo concreto: o Estado atribuiu cerca de 70 milhões de euros a projetos liderados por Manuel Serrão, através da ANJE e da associação Selectiva Moda, que acabaram por não ter retorno visível. Hoje, o caso está sob investigação no âmbito da chamada “Operação Maestro”, com suspeitas de desvio de fundos europeus. É frustrante. Quando, por contraste, apresentamos projetos sólidos e com ambição de futuro, muitas vezes nem conseguimos ser ouvidos. O foco continua a ser a exportação pura e dura, e não a criação de marcas — o que é um desperdício estratégico. Eu entendo, mas é uma visão curta. Se conseguíssemos converter 2% ou 3% da nossa capacidade produtiva em marcas, o PIB crescia automaticamente. A marca de um país é feita de tudo: das vitórias ao atraso no investimento.
A criação de marcas portuguesas enfrenta resistência interna?
Sim. Se dissermos que queremos criar um relógio de luxo português, a reação imediata é: “Vamos à Suíça.” Porque o nosso mindset ainda está colonizado. Associamos o luxo à França, ou ao “Made in Italy”. Falta-nos orgulho e confiança no “Made in Portugal”. Os italianos também não tinham marcas há 50 anos. Hoje têm um ministro do Made in Italy. É disso que precisamos: visão, estratégia, autoestima.
E o contexto político e económico internacional?
Tem falado na importância de cruzar quatro pilares: turismo, cultura, investimento e luxo. Como se faz essa ponte?
Com inteligência e vontade. Um exemplo: em Madrid, um milionário pode visitar o Museu do Tesouro Real fora de horas. Em Portugal, a resposta seria um não rotundo. Felizmente, já há sinais de abertura. O turista de alto rendimento valoriza o contacto com o artesão, com a marca, com a cultura. Quer autenticidade. Sabia que o Museu do Azulejo é o mais visitado por turistas estrangeiros? Temos património extraordinário — jardins, edifícios, o centro histórico de Lisboa. Mas a Avenida da Liberdade está em ruínas. A feira de artesanato no meio das lojas de luxo é um sintoma. Chegámos a propor um bairro da excelência no Parque Mayer. Nada avançou.
Quem são os atores-chave para essa mudança?
Todos. O Estado tem de apoiar, através da Cultura, do Trabalho, da Educação. É preciso dignificar o título de mestre artífice, criar incentivos à formação. Também as marcas têm de acreditar que é possível fazer mais e melhor. Mas o que faz acontecer é a vontade. E, neste momento, falta um projeto comum.
A instabilidade política afeta?
E os vistos gold? Que balanço faz?
O que é, afinal, a marca Portugal?
Há modelos de referência?
20% dos turistas geram 80% da receita. Como captar esse segmento?
Com coragem. Com pricing adequado. Com um plano a cinco ou seis anos. Com envolvimento dos portugueses. Precisamos de um símbolo aglutinador, algo que nos una. O futebol deu-nos isso com o Scolari e o Cristiano Ronaldo. Agora falta que o país recupere essa energia.







